Quando nasci meus pais, como todos, me levaram para os antigos lerem minha sorte, e ficaram surpresos com a resposta. Dizia ele que eu seria uma sobrevivente, nada mais, além disso. O tempo passou, agora sou adulta, possuo outra crença e mesmo assim continuo acreditando, pois na verdade não passo de uma sobrevivente.
Quando eles aqui chegaram foram comparados com deuses, foram lhe dados escravas, ouro, toda a sorte de presentes para agradar, mas mesmo com todos me dizendo que enfim a profecia havia se cumprindo, eu continuava a temê-los. Sabia que meu rosto era alvo de olhares que eu não compreendia, mesmo sem compreender eu temia, e com isso sujava todo meu rosto de lama, na vã expectativa de não ser notada.
Infelizmente meu meio de sumir não era tão eficaz. Havia momentos em que não tinha lama para cobrir meu rosto. Como esse que contarei agora.
Estava eu no templo junto com meus irmãos, não de pai e mãe, irmãos de povo, de mesma raça. Orávamos aos deuses, não sei o que eles pediam, mas eu pedia apenas a verdade, queria saber se aqueles que chegaram pelo mar eram os deuses que voltaram, precisava de uma resposta...
E no final foi o que realmente tive...
Eles entraram no templo de forma tão violenta que todos que estavam lá gritaram. Portavam vestes de aço, e espadas afiadas. Com elas cortavam cabeças e membros de meus irmãos.
Lembro-me claramente de uma mão vir parar perto de mim, foi o que me deu o impulso de me esconder. Era tarde, já haviam me visto. Corri. Escorreguei no sangue que cobria o chão. Cai. Olhei para o lado, vi pedaços de carne humana que não soube identificar o que era. O chão de branco passou a vermelho em tão pouco tempo que não pude notar.
Meu coração batia mais forte que aqueles que eram agraciados para serem entregues aos deuses. Não conseguia levantar. Fui me arrastando até o altar. Precisava da ajuda dos deuses para fugir da fúria daqueles homens.
A cada imagem quebrada era um grito que eu dava. Sabia que precisava ficar em silêncio, mas quem eram aqueles homens que quebravam as imagens dos deuses sem que nada lhes acontecessem. Neste momento que fui notada, e que eu também notei que era a única de minha raça viva ali dentro do templo.
Um dos homens veio em minha direção, retirou o elmo e fintou-me com aquele olhar que eu tanto temia. Cobria meu corpo da forma que podia, e usava o sangue de meus irmãos para encobrir meu rosto. Mas nada adiantou...
Ele me viu. Gritou algo que não entendi aos seus companheiros. Todos comemoram. E eu não entendia nada, o homem e puxava pelo braço. Não sabia mais a quem dirigir minhas orações, se eles eram deuses eu seria sacrificada, e se não fossem? O que seria feito?
Minhas perguntas logo foram respondidas quando fui levada para a casa do homem que me pegou, quando meu corpo foi invadido por aquele que matou meus irmãos.
Hoje estou aqui, oro para um deus que ao mesmo tempo é três, fui batizada, aprendi algumas palavras que me fazem comunicar, mas mesmo assim ainda quando fecho os olhos vejo meus deuses.
Não sei onde estavam. Se ficaram cegos, ou se estavam mortos. Só sei que com os Astecas eles não estavam, e nem estão mais. Hoje carrego dentro de meu ventre uma criança que é fruto de todas as noites que sou obrigada a deitar com este homem. Lavo as vestes que são a prova que meu povo está sendo dizimado. Dou-lhe alimento...
Realmente a previsão estava certa: não passo de uma sobrevivente, que agora dita o que viveu para que fique marcado que um dia já vivemos, pois após a chegada, que fora anunciada, nós apenas sobrevivemos...
- Agora traduzirei para o espanhol... – falou o tremulo velho.
As crianças ficaram paradas, era realmente lindo ver alguém falando o idioma de seus ancestrais, não haviam entendido uma palavra sequer, mas sabiam que ali estava a sua história, o seu passado... E que em breve alguém aprenderia, e que assim manteriam viva a memória de um povo.
Monica Sicuro é Professora de História e Empreendedora, atualmente coordena a Unidade Alcântara da VIA CERTA Educação Profissional.
Crédito - Wikipedia Quadro:The return of Columbus, 1493. Painting by Ricardo Balaca, 1892.
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